Ontem fui fazer uma compra rápida no supermercado perto de casa. Iogurtes, leite, suco e verduras para fazer uma carne assada.
Em dias feriados quando vou cedinho, sempre paro o carro na porta para ganhar tempo, evitando as cancelas do estacionamento.
Das outras vezes eu já havia notado um carroceiro sentado perto da porta, meio acanhado.
Eu tenho por política não oferecer nada de ajuda às pessoas na rua, a menos que me peçam explicitamente: o risco de ofender a honra e a dignidade deles é muito grande.
E isso é ainda mais crítico no caso dos carroceiros, pessoas que admiro profundamente tanto pelo esforço físico no trabalho desumano, ganhando uns meros trocados no final de um dia pesadíssimo, como pela persistência em insistir no trabalho honesto numa sociedade onde é mais fácil se associar ao crime.
Eles são um exemplo diário, um tapa coletivo nas nossas caras, nos lembrando que a honestidade e o trabalho duro são valores universais que devem ser perseguidos sempre, sob quaisquer circunstâncias.
Mas desta vez ele veio falar comigo, mesmo de longe, respeitando minha máscara anti-covid. ‘Moço, daria para me comprar alguma coisa?’
Quando perguntei o que ele precisava mais, ele soltou um sorriso acanhado: ‘hoje é meu aniversário, 45 anos!’
‘Mas aí você precisa me dizer o que quer de presente! Afinal, hoje é seu aniversário!’
Ele nitidamente não esperava gerar tanto interesse em alguém como eu e, depois de um vai e vem de perguntas, ficou decidido que preferia algo para comer agora e não mais tarde.
‘Qualquer coisa está bom, moço.’
Entrei no supermercado determinado a melhorar um pouco o aniversário de 45 anos dele: bolo, sucos, batata frita, frios, 3 tipos de pães, chocolates, tomatinhos e mexericas. Fiz uma sacola enorme para ele.
Quando ele me viu, quase não acreditou e fez questão de mostrar todo orgulhoso seu RG, novinho - surpreendente para quem trabalha ao relento. E lá estava: 01/05/1975. Era mesmo o aniversário dele.
Ao receber a sacola, entre agradecimentos efusivos, ele me perguntou qual era a minha religião: ‘O senhor é católico, evangélico...?’.
Pensei uns segundos e achei que dizer “judeu convertido agnóstico” ia dar um nó na cabeça dele e fui para o mais simples: ‘Sou agnóstico, não acredito em Deus’.
Senti pela expressão profundamente surpresa que o chão havia desaparecido sob seus pés: “como assim, não acredita em Deus e ainda por cima está me ajudando!?!” era o grito silencioso de decepção que vinha dos seus olhos.
Percebi instantaneamente que havia quebrado um dogma, quase um tabu de vida dele e resolvi desanuviar: ‘Não é preciso acreditar em Deus ou ter religião para se ajudar o próximo; fazer o bem é um valor universal’.
Pronto, a ordem das coisas estava reestabelecida e ele quase suspirou de alívio, soltando um sorriso de satisfação.
Só não me abraçou pois essas liberdades um carroceiro nunca se dá, mesmo em tempos normais.
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