Poucas pessoas normais conseguem tolerar o excessivo patrulhamento woke que tomou conta da vida cotidiana. Desde expressões que não podemos mais usar, a piadas que não são mais aceitáveis ou posições políticas maniqueístas e superficiais que dominam a agenda de discussões.
O politicamente correto tem muito valor e a língua é, sim, instrumento de dominação e hierarquização social. Todavia, a situação hoje é insustentável.
Vamos usar o humor, a comédia, como exemplo.
Humor sempre teve um papel revolucionário na sociedade humana, dos gregos antigos, passando por Moliére, até os stand-ups de hoje. Comédia tem que ser iconoclasta e questionadora por natureza, provocar e fazer as pessoas repensarem seus dogmas e preconceitos de forma mais leve, rompendo a barreira formal que tabus criam para prevenir mudanças sociais e de status.
Todavia, o humor moderno vem ficando muito chato nos últimos anos, pois ou é super escatológico e nojento, ou não tem graça nenhuma. Já faz tempo que comediantes se recusam a fazer espetáculos em universidades que, de bastiões do conhecimento e do questionamento, viraram antros da intolerância fascista e da perseguição aos que não pensam exatamente como eles.
Entre os estereótipos ultra politicamente incorretos dos Trapalhões, que amávamos na minha infância, e o povo 'ofendidinho' de hoje em dia tem um vasto campo de possibilidades, nuances e tolerância mútua.
Mas fomos do 8 ao 80 sem parar no 44!
Mesmo assim, dentro da comédia tem gente espetacular que está tentando empurrar a fronteira de volta para o 44.
Porta dos Fundos, Rick Gervais, Jimmy Carr, Bill Burr, Sarah Silverman, Ricardo Araujo Pereira, entre outros, são excelentes comediantes que estão sempre forçando ou rompendo a fronteira do politicamente correto, batendo forte nos wokes de plantão.
A Sarah Silverman tem um vídeo sobre a venda do Vaticano para erradicar a fome que, além de ser hilário e um soco no estômago da Igreja, daria cadeia em muitos países católicos intolerantes… o Rick Gervais e o Jimmy Carr estão sempre na tênue fronteira entre a piada hilária e o sorriso amarelo constrangedor.
Sabemos que o movimento identitário woke que domina as universidades de elite nos EUA, Reino Unido, Europa, assim como as universidades públicas no Brasil (USP, Unicamp, Federais, etc.) é inaceitável, de uma dualidade moral nojenta e, pior, faz um desserviço incomensurável às décadas de avanço dos direitos das mulheres e minorias.
Quando imbecis de Harvard, Yale ou da FFLCH na USP relativizam as atrocidades inomináveis do Hamas contra mulheres, idosos e crianças israelenses, o backlash que ocorre contra todos os avanços legítimos e necessários das últimas décadas é enorme.
A extrema direita sectária não é nada mais do que uma reação natural a todos esses excessos surreais.
Do Bolsonaro ao Duerte, Orbán, Milei, Chega em Portugal, Melloni na Itália, Le Pen na França, PiS na Polônia, Geert Wilders na Holanda e a AfD na Alemanha, entre outros, só tiveram/têm sucesso alimentados pelas reações naturais aos excessos da esquerda identitária.
E a esquerda, como é natural em quem se acha religiosamente imbuído pela verdade e acima do bem e do mal, dobra a aposta e radicaliza ainda mais, retroalimentando o recrudescimento da extrema direita.
Isso posto, chegamos ao Monteiro Lobato e aos racismos e posições “arcaicas” de alguns escritores e pensadores antigos.
O assunto surgiu numa conversa entre amigos, quando alguém se disse indignado com a acusação de racista ao Monteiro Lobato. Eu, como fui leitor assíduo e repetitivo de toda a obra do Lobato, até entendi a colocação, mas não consegui concordar com a indignação.
Explico: até meus filhos serem alfabetizados, o ritual diário de ir dormir incluía lermos para eles. Num dado momento eu resolvi resgatar os livros do Lobato que foram a grande paixão da minha infância e comecei a ler trechos todas as noites. Rapidamente tive que começar a pular partes ou simplesmente "editar" o texto, trocando palavras ou expressões chocantes que ia encontrando, tais como "Tia Nastácia é uma negra indolente..." ou ainda "negra beiçuda" ou "negra de estimação".
Pode-se até tentar explicar isso para uma criança de 10 ou 12 anos, que já compreende contexto e nuances, mas é inadmissível para os menores, de 3, 4 ou 6 anos.
Rapidamente abandonei o Sitio do Picapau Amarelo do Lobato e voltamos para o Roald Dahl e suas incríveis histórias.
Isso não quer dizer, necessariamente, que acho o Lobato racista ou até mesmo que ele era racista. Mas os textos dele refletem situações consideradas “normais”, plenamente aceitas pela sociedade do seu tempo e que, felizmente, são abomináveis hoje.
O Jean Jacques Rousseau é um dos maiores filósofos da humanidade, mas foi um ser humano desprezível em relação aos seus filhos. Isso desmerece toda a obra dele? Eu não gosto de alguns de seus conceitos pois acho que as esquerdas latinas (Sul da Europa e América Latrina) se perderam ao se apoiarem nele. Mas isso é assunto para outro dia.
Karl Marx era outro de moralidade duvidosa: um vagabundo que vivia às custas do seu amigo Engels e abusava sexualmente da sua empregada. É por aí que devemos atacar o marxismo? Eu acho que não, pois a falácia Ad Hominem é sempre muito pobre e é mais fácil e inteligente detonar as inúmeras inconsistências metafísicas bizarras do seu pensamento econômico e social.
Ezra Pound foi um grande poeta que ajudou a descobrir e moldar vários autores incríveis da literatura moderna. Mas ele era um antissemita de carteirinha e apoiou abertamente os fascistas na Itália até sua morte em 1972. Eu não gosto da obra dele, mas não porque ele foi um fascista.
O personagem Shylock do Sheakspeare é um estereótipo grosseiro e racista dos judeus. Isso invalida a fantástica, emocionante, universal e riquíssima obra dele? Eu acho que não.
Salvador Dali foi de ateu a apoiador do fascismo franquista, era sádico e batia em mulheres. Isso desmerece sua obra e contribuições riquíssimas às artes?
A lista de contradições é gigante…
Há uma enorme distância entre os imbecis woke que acham qualquer homem branco heterossexual culpado por todos os males da sociedade e pessoas que, de fato, merecem ser ostracizadas por suas posições e ações políticas.
Ainda estamos no processo de depuração, no olho do furacão woke excessivo e fascista (sim, o povo woke é fascista, autoritário e contra todos os princípios do Iluminismo!).
É difícil conseguir separar o joio do trigo no meio de um tiroteio, mas lentamente o pêndulo vai voltar para o centro.
Teremos algumas baixas no processo, muitas merecidas, outras dano colateral excessivo. Talvez alguns Lobatos sejam descartados pelas próximas gerações. Talvez o próprio Lobato fique obsoleto e as novas gerações percam o interesse em sua obra, tanto por usar linguajar datado e potencialmente ofensivo, como por retratar um mundo que não diz mais nada para os jovens atuais.
Fundamentalmente, temos que lembrar que as gerações passadas já fizeram o mesmo: o que consumimos hoje já foi curado/escolhido/validado pelos nossos antepassados. Nós só vamos repetir os mesmos erros e acertos, só que em outro contexto histórico e político.
E nossos filhos e netos vão repetir o mesmo em algumas décadas…
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