Faz tempo que não faço textões sobre o Brasil, uma vez que 99% é sempre repetição do mesmo, já que a agenda do Brasil, à despeito de ser barulhenta, teima em ser oca e em ficar patinando exatamente no mesmo lugar. Estamos naquele filme "O Dia da Marmota/Groundhog Day", mas sem o benefício de aprender com os próprios erros.
Quando eu falo (quase) a mesma coisa que o Mangabeira expõe no vídeo acima, as pessoas me acusam de ser chato, repetitivo, pessimista, Cassandra, etc... e invariavelmente atacam o mensageiro, quase nunca a mensagem.
Mas, como há alguns erros na análise do Mangabeira e pontos que merecem desenvolvimento, não resisti:
1. Ao contrário da crença dele, rentismo não é só financeiro. Aliás, esse é um erro comum nas esquerdas, pois Marx não reconhece os juros como algo justo ou legítimo. Para o Marx, só o capital investido em atividades produtivas é “aceitável”.
Só que essa análise é tosca e superficial ao não entender como o sistema financeiro funciona: juros pagam o uso do capital por aqueles que não o têm e querem ou precisam fazer investimentos produtivos ou cobrir seu déficit financeiro por excesso de gastos (caso típico dos governos, por exemplo).
Marxistas e esquerdistas não entendem o encanamento complexo do sistema financeiro e não conseguem criar relações causais entre um pequeno poupador que aplica na poupança ou em renda fixa (recebendo juros) e a grande empresa que constrói prédios, estradas, fábricas e financia seu capital de giro, ou a prefeitura que faz obras de saneamento e paga salários de professores e policiais.
Mas, querer uma esquerda com honestidade intelectual e cabeça aberta para entender a real complexidade do mundo é algo impossível.
2. Rentismo é a obtenção de benesses econômicas desproporcionais às contribuições do grupo que as captura.
Funcionários públicos são rentistas ao custarem quase 15% do PIB e entregarem serviços ineficazes horrorosos.
Empresários liberais são rentistas ao pagarem pouquíssimos impostos via estrutura de PJ.
Todas as empresas no Simples e/ou Lucro Presumido, assim como empresas que obtém empréstimos subsidiados, ou que são protegidas por impostos de importação elevados são rentistas.
O judiciário, que custa 3x mais do que a média mundial (em termos de % do PIB) e majoritariamente protege os ricos, é rentista.
Todos que NÃO pagam imposto sobre dividendos são rentistas.
A Zona Franca de Manaus e todas as regiões com benefícios fiscais são rentistas.
Viúvas e filhas de juízes e militares são rentistas.
Todos os que frequentam universidades públicas gratuitas são rentistas.
Todos os aposentados precoces são rentistas.
Sindicatos que querem voltar a receber imposto sindical obrigatório querem ser rentistas de novo.
E a lista continua e continua e continua.
Convenientemente, a esquerda ignora praticamente toda a lista acima, focando nos “juros” como o
“grande vilão rentista capitalista” (sic).
E a direita só quer acabar com os rentismos (privilégios) dos outros…
3. Pela lista acima, prezado leitor, você já percebeu que eu e você somos rentistas, mesmo que talvez em níveis, e via atividades, diferentes.
O "complô" não é entre bancos malvados e a Faria Lima inescrupulosa e uma elite maquiavélica que quer manter os pobres, pobres e os ricos, ricos. O conluio do atraso é entre TODA a elite rentista (que é enorme) que se recusa a abrir mão dos seus privilégios.
O que o Mangabeira chama de "pobrismo" é resultado de décadas de captura do Estado e das riquezas geradas pelo país, que são utilizadas de forma cada vez mais ineficaz (não vou nem falar de eficiência…), limitando severamente nosso potencial de crescimento.
Na verdade, o resultado tem sido o empobrecimento geral do país versus o resto do mundo, mesmo para as classes rentistas. Estamos a cada ano mais parecidos com uma elite de país africano miserável que só é rica no seu próprio contexto. Em Londres ou NYC seriam lavadores de prato…
4. Importante mencionar que nos últimos 40 anos tivemos um impulso adicional, único e fantástico, que veio do bônus demográfico. Só que ao invés de enriquecer o país e romper a barreira do subdesenvolvimento, quase todo o bônus foi usado para amortecer o rentismo exacerbado do país. Ou seja, ganhamos na loteria demográfica e gastamos tudo nas férias, bebendo whisky falsificado e fumando crack… Agora o verão acabou e a cigarra vai passar frio: ficaremos velhos rapidamente, ainda sendo muito pobres.
5. O Brasil teve o milagre econômico principalmente graças à transferência de mão de obra pouquíssimo produtiva do campo para as cidades, ao mesmo tempo fazendo a produtividade do campo explodir (obrigado Delfim Neto e sua incrível Embrapa!).
Mesmo a produtividade industrial e de serviços sendo muito baixa no Brasil, ela era muito maior (anos 50, 60 e 70) do que a dos trabalhadores rurais da época. Isso é a grande causa do crescimento rápido que vivemos desde o JK até 1974. Mas acabou…
Desde o Segundo PND do Geisel, em 1974, começamos deliberadamente a fazer escolhas erradas seguidas por mais escolhas equivocadas, sem nunca tentar resolver o problema distributivo do país. O rentismo explodiu e se aprofundou, e o país praticamente parou de crescer.
Pior, isso se passa nas 4 décadas quando o mundo rico se preparava para a revolução digital, a Indústria 4.0, etc. que desembocaram na Inteligência Artificial e na robotização pervasiva e sofisticada.
A nossa resposta para isso foi a Lei da Informática do Figueiredo. Não precisa dizer mais nada, né?
6. Uma população que majoritariamente é analfabeta funcional não tem a menor chance de sobreviver dignamente num país que irá ser um grande produtor de commodities para o planeta. E com uma produção de commodities (de alimentos a petróleo, minérios e celulose, etc.) 90% automatizada, quase sem mão de obra - desqualificada ou semiqualificada. O agricultor manual não existirá mais, assim como o atendente de call center, o motorista de Uber, táxi, caminhão ou ônibus, e milhões de profissionais sem qualificação. Se médicos e advogados correm o risco de sumir, o que será desse povo? Preocupante, para dizer o mínimo.
O problema é que demora 40-50 anos para criar uma população educada e digitalizada. E agora não temos mais tempo de reverter, ainda mais com uma estrutura estatal e previdenciária que possivelmente irá falir nas próximas duas décadas, além de estarmos exportando capital humano de qualidade como nunca dantes visto em Terras Brasilis.
7. Por fim, a solução de pensadores, economistas heterodoxos e cientistas sociais como o Mangabeira é exacerbar o rentismo aceito pela esquerda (subsídios, incentivos e proteções para a indústria), enquanto mantém intocados os rentismos que beneficiam pessoas "mais de esquerda" (funcionários públicos, judiciário, universidades gratuitas, etc.). O único "rentismo" que eles querem atacar é o nível de juros, também não entendendo que juros elevados no Brasil refletem unicamente o histórico de crédito errático e a falta de confiança na seriedade do pagador, nosso próprio governo.
Para sairmos do beco sem saída onde nos metemos sozinhos precisaremos ou (i) de um outsider visionário, extraordinariamente carismático e poderoso politicamente, que enxergue os reais problemas do país e queira e consiga enfrentar dois séculos de disfuncionalidade política e econômica, ou (ii) então as elites de esquerda e direita, se tornando generosas e desprendidas, resolvam abrir mão dos seus privilégios.
Tão importante, precisamos entender, definitivamente, que não existe milagre nem atalho mágico: ficar rico demanda décadas e décadas de sacrifícios e esforço continuado. E o tempo joga contra o Brasil, pois o bônus virou ônus demográfico, não temos estoque de riqueza financeira, de capital humano, cultural e físico (infraestrutura) adequados, nem suficientes. Nem sequer um real estado de direito, onde a lei vale para todos de forma impessoal, conseguimos ser.
Como ninguém quer abrir mão de seus privilégios ("privilégios são sempre os dos outros, os nossos são direitos adquiridos"), a possibilidade de mudanças radicais, necessárias e urgentes é remota.
O mais provável futuro do Brasil continua terrível: ser uma grande, miserável e ainda mais desigual Argentina Tropical! O país que nunca perdeu nem perde uma chance de perder uma chance.
Ou eu estaria sendo muito pessimista?
Comentários e críticas são muito bem vindos.
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